No tempo em que a Península Ibérica foi invadida pelos mouros, ano 711 a.C., um presbítero godo, chamado Eurico, era muito prestigiado pelas canções e pelos poemas que escrevia. Eurico, que abraçara o sacerdócio sem ter vocação para tal, era diretamente inspirado pelo amor que ainda nutria por Hermengarda, cujo pai impedira o casamento dos namorados.
Eurico entra para o convento no ano da avassalante invasão árabe. Quando a luta entre árabes e visigodos se torna acirrada, Eurico abandona o hábito e pega em armas para defender as terras da Espanha. Ele se transforma no Cavaleiro Negro e os seus feitos passam a correr de boca em boca.
Enquanto Pelágio prepara a defesa das Astúrias, sua irmã Hemengarda é raptada. É o próprio Eurico quem salvará sua amada, disfarçado de Cavaleiro Negro. Consegue fazê-la escapar da mão dos sarracenos e a leva para a Gruta de Covadonga, onde renasce o antigo amor, que agora esbarrou com um obstáculo intransponível: o juramento do sacerdote Eurico, que deve manter o celibato clerical.
Os amantes resolvem separar-se. O cavaleiro se lança em sucessivas investidas contra os árabes, em atitude suicida, que o leva à morte. Hermengarda, inconformada com a perda, enlouquece.
Alguns trechos do romance os lances românticos e trágicos do amor impossível, da luta entre árabes e visigodos.
(...)
Em frente da tosca ponte de pedras brutas lançadas sobre o rio, uma senda estreita e tortuosa atravessava a selva e, passando pela clareira, continuava por meio dos outeiros vizinhos, dirigindo-se, nas suas mil voltas, para as bandas da Galécia. Quatro cavaleiros, a pé e em fio, caminhavam por aquele apertado carreiro. Pelos trajos e armas, conhecia-se que eram três cristãos eum sarraceno. Chegados à clareira, este parou de repente e, voltando-se com aspecto carregando para um dos três, disse-lhe:
_ Nazareno, ofereceste-nos a salvação, se te seguíssemos: fiamo-nos em ti, porque não precisavas de trair-nos. Estávamos nas mãos dos soldados de Pelágio, e foi a um aceno teu que eles cessaram de perseguir-nos. Porém o silêncio tenaz que tens guardado gera em mim graves suspeitas. Quem és tu? Cumpre que sejas sincero, como nós. Sabes que tens diante de ti Muguite, o Amir da cavalaria árabe, Juliano, o conde de Septum, e Opas, o bispo de Hispalis.
_ Sabia-o _ respondeu o cavaleiro: _ por isso vos trouxe aqui. Queres saber quem sou? Um soldado e um sacerdote de Cristo!
_Aqui!?... _ atalhou o Amir, levando a mão ao punho da espada e lançando os olhos em roda. _ Para que fim?
_ A ti, que não eras nosso irmão pelo berço; que tens combatido lealmente conosco, inimigos da tua fé; a ti, que nos oprimes, porque nos venceste com esforço e à luz do dia, foi para te ensinar um caminho que te conduza em salvo às tendas dos teus soldados. É por ali!... A estes, que venderam a terra da pátria, que cuspiram no altar do seu Deus, sem ousarem francamente renegá-lo, que ganharam nas trevas a vitória maldita da sua perfídia, é para lhes ensinar o caminho do inferno... Ide, miseráveis, segui-o!
E quase a um tempo dois pesados golpes de franquisque assinalaram profundamente os elmos de Opas e Juliano. No mesmo momento mais três reluziram.
Um contra três! _ Era um combate calado e temeroso. O cavaleiro da cruz parecia desprezar Muguite: os seus golpes retiniam só nas armaduras dos dois godos. Primeiro o velho Opas, depois Juliano caíram.
Então, recuando, o guerreiro cristão exclamou:
_ Meu Deus! Meu Deus! _ Possa o sangue do mártir remir o crime do presbítero!
E, largando o fraquisque levou as mãos ao capacete de bronze e arrojou-o para longe de si.
Muguite, cego de cólera, vibrara a espada: o crânio do seu adversário rangeu, e um jorro de sangue salpicou as faces do sarraceno.
Como tomba o abeto solitário da encosta ao passar do furacão, assim o guerreiro misterioso do Críssus caía para não mais se erguer!...
Nessa noite, quando Pelágio voltou à caverna, Hemengarda, deitada sobre o seu leito, parecia dormir. Cansado do combate e vendo-a tranqüila, o mancebo adormeceu, também, perto dela, sobre o duro pavimento da gruta. Ao romper da manhã, acordou ao som de cântico suavíssimo. Era sua irmã que cantava um dos hinos sagrados que muitas vezes ele ouvira entoar na catedral de Tárraco. Dizia-se que seu autor fora um presbítero da diocese de Híspalis, chamado Eurico.
Quando Hermengarda acabou de cantar, ficou um momento pensando. Depois, repentinamente, soltou uma destas risadas que fazem eriçar os cabelos, tão tristes, soturnas e dolorosa são elas: tão completamente exprimem irremediável alienação de espírito.
A desgraçada tinha, de feito, enlouquecido.
Análise da obra
A obra de Eurico, o Presbítero, de Alexandre Herculano faz intertextualidade com a Bíblia, Romeu e Julieta e com a guerra dos visigodos e árabes na Península Ibérica no século VIII.
Estes poemas, em que palpitava a indignação e a dor de um ânimo generoso, eram o Gethsemani do poeta. (p. 28)
Não eram assim os godos do oeste quando, ora arrastado por terras as águias romanas, ora segurando com seu braço de ferro o império que desabava, imperavam na Itália, nas Gálias e nas Espanhas, moderadores e árbitros entre o Setentrião e o Meio-dia.
Não eram assim, quando o velho Teodorico, semelhante ao urso feroz da montanha, combatia nos campos cataláunicos. (p. 32)
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